A história dos meus fios



Cresci com a minha mãe trançando os meus cabelos. Na época esse era o costume das mães negras, antes das suas filhas atingirem uma idade considerável normal para alisar os fios das filhas, elas os trançavam. 

Ainda hoje me recordo que sempre passava parte das minhas férias na casa da minha avó. E em uma delas ela me sentou na escada que dava acesso à casa para trançar os meus cabelos com aquelas mãos negras com unhas longas pintadas em vermelho. Ela falava: nunca deixei a sua mãe sem arrumar o cabelo, andava com ela sempre com os cabelos trançados e com fita na cabeça. 

Isso era a unica condição aceitável para os cabelos crespos. O ato era lindo, mas muitas de nós não acritavamos bem, pois queríamos também poder soltar nossos cabelos.

Mas as mulheres negras crespas não nasceram para andar com os cabelos soltos naturais. 

Quando comecei a frequentar o jardim de infância, via minhas colegas de cabelos lisos soltos e para mim aquele era o ideal a ser alcançado. Além de ter várias bonecas Barbie's com cabelos longos, lisos e loiros. Eu não me via nas bonecas e na TV. Então comecei a pedir a minha mãe para me deixar de cabelo solto e eu pensava que meu cabelo ficaria com o das meninas do jardim ou das bonecas, liso e com movimento. O alisamento foi a tendência natural que minha mãe seguiu. 

Eu com o cabelo molhado, mas alisado. Por volta de 8 anos de idade


É importante dizer que o alisamento naquela época era a única opção. Não existiam a diversidades de produtos que hoje encontramos para cabelos crespos. Não sabiamos como pentear os nossos próprios cabelos, como cuidar deles. Não existia representação. Ser crespa era ter o cabelo duro e ruim, não era bonito. Nosso cabelo naquela época era feito para nos fazer sofrer, para nos fazer sermos olhadas de com olhos tortos. 

O processo de alisamento dos cabelos era sempre sofrido. O produto queima a nossa cabeça. É preciso ir passando na raiz, mecha por mecha, até que tenha produto em toda a cabeça, e se você for mais sensível, pode passar por muitas queimaduras. 

Assim cresci, alisando as raízes do cabelo a cada 3 meses e submetendo os meus cabelos ao calor do secador com uma frequência absurda. Lembro-me o quanto eu odiava o dia de alisar os cabelos, porque significava ficar horas sentada para "arrumar os cabelos". Quando ia ao salão de beleza para fazer o procedimento, ficava o dia todo e muitas vezes até a aula eu matava para fazer o alisamento.
Essa foto foi em um domingo, dia que deveria estar com o cabelo bem escovado para ir à igreja.

Lembro-me também que nos dias de chuvas apesar de querer andar nela sem sombrinhas, não podia porque acabaria com toda a escova e eu passaria vergonha. Sabe o filme "Felicidade por um fio"? Para nós que passamos pelos processos descritos no filme ele faz total sentido. 

Mas um dia decidi me libertar.

Tudo começou quando vi em um video do YouTube uma propaganda de várias mulheres negras que decidiram assumir os seus cabelos. Eu ainda não fazia ideia de como fazer. Não fazia ideia de que precisaria parar de alisar o cabelo. Não fazia ideia de como era a textura dos meus fios, mas me joguei na pesquisa. E naquele dia que minha mãe já estava pensando em alisar os meus cabelos novamente eu disse: vou assumir meus cabelos. 

Para muitos essa jornada não é fácil. Cada uma deve lidar de uma forma diferente nesse caminhar que faz parte de um auto-conhecimento, mas também faz parte de um empoderamento. É impossível falar de transição capilar sem falar em empoderamento, pois por mais que você esteja tentando se livrar de um ideal, ainda assim existe para muitas meninas o ideal de cabelo crespo bonito. 

Muitas meninas não querem ter um cabelo 4C e por desconhecem a textura dos seus cabelos podem acabar se frustando ao final da transição. Então desde o principio tomei a consciência básica de que o meu cabelo é o tipo certo para o meu corpo e que deveria amá-lo independente da forma. É importante dizer que por ficar durante anos alisando o cabelo, não sabia mais como ele era. Sim, a gente passa a desconhecer essa casa que habitamos e chamamos de corpo. 

E assim, fui lendo e compreendendo. Fui aprendendo a lidar com os meus fios, descobrindo qual a hidratação que ele mais gosta, a finalização que daria melhores resultados e aprendendo a me amar mais. 

O dia seguinte ao primeiro grande corte que fiz


Foi todo um processo de me descobrir e aprender a me amar, mesmo que para muitas pessoas este seja o cabelo feio. Por isso, digo que a transição capilar não acaba com o BC (grande corte), mas é um processo que perdura por muito tempo, até que você aprenda a se amar de verdade e amar o seu cabelo. 

Feliz com meu último corte de cabelo já em 2018


Se você está passando pela a transição capilar tenha calma, se respeite e se apaixone por cada novo fio que nasce. Se apaixone por todo o processo. Vibre por cada centímetro de cabelo que cresce. Você verá que vai valer muito a pena no final. 


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4 comentários

  1. Que texto. Não tem como se emocionar com todo esse processo. Se aceitar do jeito que a gente é tão difícil. Mas ainda tem toda uma pressão por parte da sociedade para voltarmos alisar nossos cabelos... seja pais, amigos ou trabalho

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    1. Fico muito feliz que meu texto tenha te tocado. Realmente é um processo complexo emocionalmente falando, principalmente quando existem pessoas que não respeitam o seu direito de ser o que vc é. Mas vamos lutando e enfrentando tudo isso diariamente. Bjus

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  2. Que relato forte e lindo! Me lembro da minha infância, quando todas minhas amigas crespas usavam tranças ou alisavam seus cabelos. Já para os meninos só havia uma saída: máquina 0. Amo quando reencontro essas pessoas e vejo que estão usando seus cabelos naturais, é nítido o empodetamento, a mudança na autoestima.

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    1. Nossa, realmente era assim: meninas de trança ou cabelos alisados e meninos de maquina 0. Também me recordo muito disso, pois cresci em meio à ditadura dos lisos. Mas ainda bem que estamos nos libertando e nos mostrando. Mostrando que nossos cabelos são lindos e passando por uma completa transformação.

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